Uma trajetória de desafios e respostas em prol da saúde pública
Comecei minha vida profissional em um laboratório e posso dizer que houve uma série de acontecimentos favoráveis para que eu seguisse a carreira de virologista. Em 1960, fui estagiário e, depois, técnico do Instituto Adolfo Lutz, o Laboratório de Saúde Pública do Estado de São Paulo. Participei de um curso da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), que incluía metodologias em cultura de células. Em 1961, vim para o Centro Pan-Americano de Febre Aftosa, em Duque de Caxias (RJ), para trabalhar em cultura de células e vírus da febre aftosa. Nesse período, cursei Medicina Veterinária, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, de 1964 a 1967. Em 1968, o Dr. Hermann Schatzmayr, um dos grandes apoiadores da minha carreira, convidou-me para trabalhar no Laboratório de Virologia, que estava sendo organizado na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), e aceitei na mesma hora! Isso tudo me deu uma experiência absolutamente fantástica.
Em 1969, Hermann conseguiu uma bolsa de estudos da Opas para que eu pudesse cursar a pós-graduação no Baylor College of Medicine, em Houston, Texas (EUA), no Departamento de Epidemiologia e Virologia. Lá fui incorporado à equipe de pesquisas sobre várias formas de concentração de vírus, com os professores Joseph Melnick e Craig Wallys, que desenvolveram, pela primeira vez, um termoestabilizador da vacina contra a poliomielite.
De volta ao Brasil, em 1974, defendi minha tese de doutorado, na Faculdade de Medicina da USP, e a Bayer me ofereceu a oportunidade de trabalhar em seu laboratório de produção da vacina de febre aftosa, na cidade de Colônia, na Alemanha. Foi uma experiência nova para mim; comecei a conhecer os processos de organização, as tecnologias, as boas práticas de gestão e tudo o que envolve esse tipo de produção.
Em 1975, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) passava por uma situação extremamente difícil, com inúmeros laboratórios vazios, instalações obsoletas, falta de pesquisadores, salários e orçamento muito baixos. E a epidemia da meningite meningocócica pegou o país completamente despreparado. Então, o Governo Federal definiu como prioridade política e como missão reerguer a instituição e nomeou Vinicius Fonseca para sua presidência. Vinicius Fonseca conseguiu recursos extras para reorganização, modernização de laboratórios, incorporação de cientistas de renome e contratação de mais pesquisadores, pois a Fundação havia sofrido a cassação de dez cientistas pelo governo militar.
Então, em 1976, mais uma vez por indicação de Hermann Schatzmayr, fui convidado por Vinicius Fonseca e Guilardo Martins Alves para ser o diretor da nova unidade técnica da Fiocruz, o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos). Decidi voltar ao Brasil, apesar da grande perda salarial, para assumir a direção do Instituto, com a missão de desenvolver e produzir vacinas necessárias para o programa de imunização do país. Nesse contexto, a primeira prioridade foi modernizar a produção da vacina de febre amarela.
Outro passo importante foi o projeto de produção das vacinas de sarampo e poliomielite, implementado no âmbito da cooperação técnica Brasil-Japão (1980). Todas as atividades do projeto foram concluídas no prazo estipulado e, em 1984, já tínhamos vacina de sarampo pronta, com excelentes resultados nos estudos clínicos, que foi utilizada para a erradicação da doença no país, mas, para emplacá-la, tivemos que vencer a desconfiança dos médicos e da sociedade, em geral, sobre a qualidade dos produtos brasileiros. Ainda que tivéssemos preparado toda a equipe para produção da vacina da poliomielite de forma total, verificamos que seria necessário importar primatas não humanos cynomolgus, porque a nossa colônia de macacos rhesus, que tem vírus adventícios, não serviria para essa produção. Como esses custos seriam muito altos, negociamos um contrato de importação do concentrado viral SmithKline, que se tornou GSK, e iniciamos a formulação da vacina oral de vírus vivos atenuado tipo Sabin (vacina de pólio oral desenvolvida por Albert Sabin), com a tecnologia e a qualidade de qualquer vacina do mercado internacional.
Em 1980, o Ministério da Saúde (MS) estabeleceu Dias Nacionais de Vacinação, com mobilização intensa de toda a sociedade brasileira, e, em dois ou três dias de campanha, eram vacinados 18 milhões de crianças menores de 5 anos de idade e os casos de poliomielite foram diminuindo em um nível nunca visto. Mas, apesar de dois anos consecutivos de queda, ainda havia surtos de poliomielite do tipo 3, no Nordeste brasileiro, e o MS solicitou a Bio-Manguinhos uma vacina com nova formulação, pois os prazos de entrega dos laboratórios internacionais eram longos. E, em 20 dias, entregamos essa vacina, com todos os controles de qualidade prontos, sendo utilizada no Nordeste, e o surto de tipo 3 acabou. Há 30 anos, o Brasil não tem mais casos de poliomielite e a nossa contribuição foi absolutamente importante para esse resultado.
A cooperação técnica com o Japão foi um marco para a organização de Bio-Manguinhos, que teve que se estruturar para produção em escala industrial. Tendo finalizado todas as metas do projeto no tempo aprazado e com resultados previstos, a Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA), financiadora do projeto, considerou-o como um dos melhores projetos apoiados pelo governo japonês.
Com essa estrutura industrial e muito mais profissionais em Bio-Manguinhos, trabalhando em desenvolvimento, produção, controle de qualidade e gestão, novas tecnologias de produção foram sendo incorporadas, como aconteceu, por exemplo, com a vacina do Haemophilus influenzae tipo b (Hib), no final da década de 1990. Já tínhamos tecnologia de polissacarídeos, porque, quando houve a epidemia de meningite, Vinicius Fonseca e Paulo de Almeida Machado negociaram o fornecimento da vacina de polissacarídeos da meningite, sorogrupos A e C, com o Instituto Mérieux, além da instalação de uma usina piloto de vacinas bacterianas, em 1975. Assim, pela primeira vez, no Brasil, uma vacina bacteriana para uso humano foi produzida em biorreator. Depois, fornecemos para o MS a vacina conjugada de Haemophilus influenzae tipo b (Hib), produzida com uma tecnologia de ponta e de alta eficácia. Foi uma negociação muito difícil, mas encontramos uma fórmula win-win, acertamos a transferência de tecnologia e incorporamos essa nova e moderna tecnologia de produção. Foi uma vitória fantástica! Com essa vacina introduzida no programa, houve uma queda significativa de meningite causada por Hib. Também trabalhamos com o Instituto Butantan e desenvolvemos e produzimos a vacina tetravalente DTP/Hib, que fornecemos durante alguns anos ao PNI. Desenvolvemos e realizamos os estudos clínicos para a vacina pentavalente (DTP/HB/Hib), mas não conseguimos ter o produto final, por problemas técnicos no Butantan. Na sequência, vieram outras, como tríplice viral, pneumocócica 10-valente (conjugada) e rotavírus.
A partir de 2003, atendemos à solicitação do MS e iniciamos o trabalho com biofármacos (alfaepoetina e alfainterferona), um mercado exclusivo das grandes multinacionais, com preço muito alto. Mas conseguimos quebrar esse monopólio, identificando, em Cuba, o laboratório do Centro de Imunologia Molecular, que estava produzindo o biofármaco epoetina, e o Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia (CIBG, na sigla em espanhol), que tinha outra tecnologia registrada e utilizada no país. Por causa dessa negociação de transferência de tecnologia em biofármacos com Cuba, construímos o Centro Henrique Penna, que adaptamos, rapidamente, para abrigar a atual produção para a COVID-19.
Há algum tempo, vemos que Bio-Manguinhos não tem mais espaço para expandir. Por isso, iniciamos o projeto Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde, em Santa Cruz (RJ), para ampliar as produções e atender às demandas de vacinas e biofármacos do MS, além de exportar para países que necessitem desses insumos. Tudo isso é fundamental, pois existe uma demanda muito grande de saúde pública que precisamos enfrentar.
Nos últimos anos, as questões burocráticas, de legislação e regulatórias vêm se tornando muito mais complexas, dificultando as atividades desse tipo de produção, que precisam de respostas e ações imediatas, com tudo muito bem planejado, para não faltar nada nos passos seguintes. Hoje, em Bio-Manguinhos, temos um grupo muito importante que consegue produzir, mesmo com todas as dificuldades e a pandemia da COVID-19. No mundo inteiro, os laboratórios estão sofrendo para obter os insumos de produção. Bio-Manguinhos vem negociando com dezenas de fornecedores, pois, para ter ideia da complexidade, só para um produto são utilizados, pelo menos, 300 ingredientes específicos, a maioria importada. O Instituto alcançou um patamar elevado e, agora, para dar esse salto em Santa Cruz, precisa dar outro salto, que é flexibilizar mais a questão administrativa, para responder de forma adequada aos desafios.
Faço votos que eu consiga ver Santa Cruz operando, porque é uma longa operação… Entrei na Fiocruz, em janeiro de 1968, já tem um bocado de tempo, e fiz grandes amigos, invisíveis, inclusive… Todos com o espírito de trabalhar, dar resposta e sequência ao trabalho, sempre persistindo em nossa missão. Acho que isso é que o bom em Bio-Manguinhos, todos estamos imbuídos dessa ideia de levar à frente a missão que temos nas mãos, com responsabilidade, profissionalismo, abnegação, persistência… É uma instituição pública que faz produção industrial de insumos estratégicos para a saúde pública. Dá para entender isso? E pouca gente acredita, mas é isso que nós fazemos em Bio-Manguinhos: produção industrial.
Então, Bio-Manguinhos está de parabéns: 45 anos! E chegamos aos 45 anos bem, muito bem, com inúmeros resultados alcançados e missões realizadas, mas ainda temos muito mais para cumprir! Que venham outros 45 anos!