Maria de Lourdes de Sousa Maia

Assessoria Clínica (Asclin)

Fracionamento da vacina febre amarela, recomendação para a OMS que salvou vidas

Minha relação com a Fiocruz vem desde 1976, quando era aluna do Curso Básico de Saúde Pública e, posteriormente, do Planejamento em Saúde, em que tive a oportunidade e o privilégio de ter aulas com Sérgio Arouca.

A base adquirida para a saúde pública foi fundamental para que, em 1995, assumisse a Coordenação Geral do Programa Nacional de Imunizações, do Ministério da Saúde (CGPNI/MS). Nesse período, em nossas reuniões com Bio-Manguinhos, Akira Homma, Artur Couto e Maria da Luz Leal sempre se faziam presentes nas discussões com outros laboratórios, visando à sustentabilidade dos imunobiológicos para o PNI.

O Comitê Técnico Assessor de Imunizações (CTAI), do qual participavam Hermann Schatzmayr, Akira Homma e Reinaldo Menezes, também proporcionava discussões que fortaleceram a ideia de darmos cunho científico às orientações técnicas do PNI, como alterações do calendário de vacinação.

Nesse sentido, o PNI participou de algumas pesquisas com Bio-Manguinhos, como: lote semente da vacina de febre amarela; vigilância ativa da vacina tetravalente; vacina pentavalente; interferência mútua na resposta imune à vacina contra febre amarela; e vacina combinada contra sarampo, caxumba e rubéola.

Em 2005, após minha saída do PNI, fui convidada para trabalhar em Bio-Manguinhos ao lado de Reinaldo Menezes, então coordenador da Assessoria Clínica (Asclin), a quem vim a substituir, em 2007, e consolidar o trabalhado iniciado, conduzindo diversos estudos reconhecidos pelo Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), entre outras instituições, e que muito vêm contribuindo para a saúde pública.

Entre os projetos que Bio-Manguinhos realizou sempre em prol da saúde pública, tenho orgulho de ter participado da condução dos estudos clínicos de dose-resposta e duração da imunidade com a vacina febre amarela produzida no Instituto.

Iniciado em 2009 e com resultados publicados em 2013, esse estudo envolveu 900 militares do exército brasileiro, que se voluntariaram, e permitiu demonstrar que a vacina de febre amarela de Bio-Manguinhos é efetiva mesmo em doses muito menores que a usual, de 587 UI (aproximadamente, 1000 PFU – Unidade Formadora de Placa, na sigla em inglês).

Posteriormente, houve a necessidade de saber se a duração da imunidade induzida por estas doses menores é mantida durante pelo menos dez anos. Nós fizemos um estudo em 2017, em que verificamos que a imunidade à febre amarela nessas doses reduzidas foi mantida durante oito anos, sem diferença significativa. Em abril de 2019, voltamos a contactar os voluntários, sendo, portanto, um novo estudo de duração da imunidade de dez anos.

Além disso, em 2019, foi realizado um estudo por Olindo Assis Martins Filho, pesquisador do Instituto René Rachou/Fiocruz, visando a determinar se a memória imunológica humoral e celular específica para 17DD-YF (vacina febre amarela) é mantida oito anos após a vacinação primária com subdoses, o qual demonstrou que apresentavam níveis semelhantes de anticorpos neutralizantes e de memória celular específica para febre amarela, respectivamente CMCD4 e EMCD8, em comparação com a dose completa de referência.

Tais estudos demonstram o compromisso do Instituto, e de nossa Assessoria Clínica, hoje uma plataforma de pesquisa clínica, com a formulação de estratégias de vacinação da febre amarela, sempre visando à qualidade e à segurança de seus produtos, por mais conhecidos que sejam, como essa vacina.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma dose única da vacina febre amarela é suficiente para manter imunidade protetora contra a doença por toda a vida, e por isso uma dose de reforço não seria necessária.

Essa questão é difícil de ser avaliada, pois não há correlato sorológico de proteção contra febre amarela, e a soropositividade é definida com diversos pontos de corte. Embora os estudos indiquem que a duração da proteção após a vacinação é longa, há várias evidências na literatura de que o título de anticorpos cai ao longo dos anos, mais acentuadamente em crianças menores de quatro anos e, portanto, níveis considerados como soronegativos em pelo menos uma parte dos vacinados.

Durante o surto de 2016/2018, em virtude da escassez de vacina, o Ministério da Saúde decidiu adotar uma dose única por toda a vida, como recomendado pela OMS. Mesmo antes disso, em 2016, 7.509 casos suspeitos e 1.080 confirmados por laboratório, incluindo 171 mortes, haviam sido notificados à OMS durante surtos que ocorreram em seis países: Angola, República Democrática do Congo (RDC) e Uganda, na África; e Brasil, Colômbia e Peru, nas Américas. Destes, dois surtos urbanos – em Angola e na RDC – reiteraram a ameaça da febre amarela e resultaram em 137 mortes confirmadas.

Além de aparecer de tempos em tempos, é fato que a intensificação da mobilidade internacional e as mudanças climáticas facilitam a propagação de doenças infecciosas, como a febre amarela, e geram a necessidade de aumentar a oferta da vacina.

Mesmo com o aumento da capacidade de produção de Bio-Manguinhos, vacinas não são produtos que ficam prontos de um dia para outro. Para fazer frente ao aumento de demanda do Brasil e em outros países, principalmente na ocorrência de epidemias, quando há necessidade de vacinar milhões de indivíduos em um período curto de tempo, é preciso pensar além.

Daí, volto aos estudos e ao motivo do orgulho de ter colaborado com eles: a vacina atual de Bio-Manguinhos tem uma potência muito alta, muito acima das 1000 UI recomendada pela OMS, e foi graças aos estudos que conduzimos que foi possível adotar a estratégia de fracionamento das doses para proteger o maior número de pessoas.

Essa opção, cientificamente validada pelo trabalho dos profissionais de nossa Assessoria Clínica, permitiu ao Grupo Consultor Estratégico de Especialistas (SAGE) da OMS determinar, em 2016, o uso da dose fracionada em 1/5 da dose usual para campanhas de controle de surtos urbanos em situações de escassez aguda de vacinas. A OMS endossou a recomendação. Além de vacinas, isso comprova que, também, produzimos estratégias de saúde pública.