Elaine Maria de Farias Teles

Coordenação Tecnológica (Cotec)

Da parceria com o Instituto Mérieux no século XX às Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDPs) no século XXI

Desde a sua formação, Bio-Manguinhos traz em seu DNA não só a importante responsabilidade de ser um alicerce nacional para produção e fornecimento de vacinas e outros produtos biotecnológicos, em atendimento às necessidades da saúde pública brasileira, como também a característica marcante de buscar na inovação o fortalecimento da sua missão pública na área da saúde. Nessa vertente da inovação, a instituição se baseou em dois pilares: o desenvolvimento tecnológico (seja ele intrínseco ou em colaboração com outras instituições) e a transferência de tecnologia (TT), através de parcerias com instituições tecnologicamente mais avançadas.

A transferência de tecnologia permite a incorporação mais rápida de novos produtos em atendimento às demandas do Sistema Único de Saúde (SUS), ao mesmo tempo em que fortalece a capacidade e competência nacionais. O papel das transferências de tecnologia na história de Bio-Manguinhos é muito significativo e é gratificante poder dar o testemunho sobre grande parte dessa trajetória.

Em 1976, buscando combater uma epidemia de meningite meningocócica que assolou o Brasil, uma parceria com o Instituto Mérieux viabilizou a doação de uma planta piloto para a produção da vacina polissacarídica MenA+C em Bio-Manguinhos, assim como a transferência da tecnologia para fabricação nacional da vacina. Era um laboratório completo, incluindo equipamentos para produção e controle de qualidade. Um desses equipamentos emblemáticos é o “fermentador bola”, atualmente exposto na entrada do Centro de Produção de Antígenos Bacterianos (CPAB). A absorção dessa tecnologia, além de garantir o fornecimento nacional da vacina a partir da produção nacional de mais de 60 milhões de equivalentes dos polissacarídeos meningocócicos sorogrupos A e C, permitiu a Bio-Manguinhos aumentar a sua capacidade produtiva e capacitar equipes, tanto de produção quanto de controle de qualidade, desenvolvendo competências nacionais conforme os padrões exigidos à época.

Na década de 1980, duas importantes parcerias com instituições japonesas (Instituto Biken e Instituto de Pesquisa de Poliomielite do Japão) – ambas com significativos resultados de desenvolvimento tecnológico conjunto, já que Bio-Manguinhos implementou melhorias nos processos produtivos para os quais foi treinado – foram fundamentais para a inclusão de duas importantes vacinas no portfólio: o sarampo e a poliomielite oral, respectivamente.

Ingressei em Bio-Manguinhos em 1995. Fui entrevistada pelo então gerente do Laboratório de Vacinas Bacterianas (Laba), Antonio Barbosa, e o consultor inglês Dr. Chris Driver, sendo aprovada para compor a equipe do Projeto da Vacina tríplice bacteriana (DTP: contra difteria, tétano e pertussis ou coqueluche). No âmbito desse projeto, tive a oportunidade de, juntamente com Giovana Labanca e Gerson Rosemberg, treinar durante duas semanas, nas instalações do Instituto Butantan, acompanhando a produção dos componentes difteria e pertussis, que até então seriam produzidos também por Bio-Manguinhos. A estratégia nacional previa que Butantan, Bio-Manguinhos e Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) fossem produtores da vacina tríplice bacteriana ou de parte de seus componentes.

Entretanto, no final da década de 1990, houve um redirecionamento da estratégia nacional para a produção de vacinas pelos laboratórios públicos (Bio-Manguinhos, Butantan e Tecpar), alterando o pipeline de Bio-Manguinhos, que passou a ser responsável pela produção da vacina contra Haemophilus influenzae tipo b (Hib) em vez da DTP, porque a fábrica do Butantan produzia volume suficiente para atendimento ao Programa Nacional de Imunizações (PNI).

A chegada do Projeto Hib ao portfólio de Bio-Manguinhos trouxe um formato inovador de parceria, utilizando o grande poder de compra do Estado Brasileiro para aquisição de vacinas (dada a dimensão da demanda do PNI), para atrair grandes multinacionais a transferir tecnologia de ponta em contrapartida à reserva desse mercado. Nesse formato de parceria, o transferidor tem a garantia do mercado público brasileiro durante o período da TT e o compromisso de transferir totalmente a tecnologia de forma a nos tornarmos totalmente independentes ao final do projeto.

Assim, em outubro de 1998, foi assinado o primeiro acordo de transferência de tecnologia nos moldes atuais, entre Bio-Manguinhos e SmithKline, para a vacina Hib. Esse formato virtuoso de parceria público-privada seria, então, o embrião e a referência para as Parcerias para Desenvolvimento Produtivo, as PDPs. É aí que a minha trajetória se encontra com a história das transferências de tecnologia de Bio-Manguinhos. Com a assinatura desse contrato, passei a integrar a equipe do Projeto Hib pelo Departamento de Vacinas Bacterianas (Debac), originário do antigo Laba.

Pode-se dizer que o Projeto Hib foi um marco na história de Bio-Manguinhos. Foi um ponto de inflexão para o amadurecimento institucional e nacional na produção de imunobiológicos. O momento era propício para essa guinada porque, além da assinatura da parceria com a Smithkline (que já possuía elevadíssimos padrões de qualidade) em 1998, logo em seguida, foi criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 1999, e estávamos em franca ampliação do nosso parque tecnológico.

Participei desde o início do Projeto Hib, gerenciado à época por Fernando Lopes, com quem trabalhei durante muitos anos que me proporcionaram enorme aprendizado individual e institucional. O projeto motivou melhorias e crescimento nas diversas áreas da unidade, que passaram a aprender com o elevado padrão do parceiro tecnológico.

A área destinada à produção do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA) da vacina Hib foi a que, atualmente, é o CPAB. O prédio havia sido inicialmente desenhado para a produção da vacina DTP. A revisão do projeto do CPAB – cujo layout e infraestrutura tiveram que ser totalmente revisitados para abrigar a produção do IFA de Hib, assim como a absorção da tecnologia de produção e controle de qualidade da vacina – envolveu, praticamente, todas as áreas de Bio-Manguinhos: assuntos regulatórios, engenharia, validação, controle e garantia da qualidade, produção, desenvolvimento tecnológico, comercial, logística, jurídica, entre outras. O Debac foi, então, reestruturado para incorporar a produção desse IFA, e eu pude contribuir assumindo a supervisão da Divisão de Ativação e Conjugação de Polissacarídeos (DIACP).

Com o avanço da TT de Hib e a inauguração do CPAB em 2004, tive a oportunidade de recepcionar a comitiva do Presidente Lula, que veio para a inauguração do prédio e ainda participou da instituição da “pedra fundamental” do Centro de Produção de Antígenos Virais (CPAV). A partir daí, treinamos equipes da Anvisa em nossas instalações, para maior conhecimento sobre áreas produtivas e processos industriais para produção de imunobiológicos.

Desenvolvemos fornecedores locais, tais como o que forneceu os reatores para as atividades de ativação e conjugação na produção do IFA de Hib, substituindo assim a necessidade de importação desses itens, o que retrata o importante papel de Bio-Manguinhos para o desenvolvimento da cadeia nacional de produção de produtos biotecnológicos, contribuindo desde aquela época com o que, atualmente, é chamado de Complexo Industrial da Saúde (CIS).

As últimas atividades de TT do Projeto Hib ocorreram, em 2005, com a liberação dos primeiros lotes da vacina totalmente nacionalizada e, a partir de 2007, a Anvisa aprovou a última alteração pós-registro, incluindo Bio-Manguinhos como local de produção do IFA.

Desde a parceria com a GSK/Bélgica (durante a TT, a SmithKline se uniu à Glaxo, formando a GSK) para a TT da vacina Hib, em 1998, muitas outras TTs seguiram com diversos parceiros de diferentes países. Além das transferências de tecnologia para Bio-Manguinhos, em 2007, foi assinado um acordo de transferência de tecnologia reversa, em que Bio-Manguinhos foi o transferidor da tecnologia de produção da vacina MenA+C para o Instituto Finlay, de Cuba. Essa parceria foi firmada visando ao atendimento à demanda da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o combate às meningites meningocócicas, principalmente na região endêmica do subSaara africano, e reforçou o importante papel de Bio-Manguinhos para a saúde pública global.

Considerando que as TT estão presentes desde o início de Bio-Manguinhos, essa história é longa e não consegue ser traduzida em um único capítulo. Até 2004, as TTs estavam voltadas para vacinas (bacterianas e virais), mas, a partir de 2004, os kits de diagnóstico e os biofármacos foram incorporados ao seu portfólio.

Outro importante destaque foi a regulamentação das PDPs, em 2014. Até então, as TTs envolviam sempre dois parceiros tecnológicos: a instituição transferidora e Bio-Manguinhos como instituição absorvedora da tecnologia. A partir do regramento da política de PDPs, as parcerias passaram a ser, em sua maioria, tripartite, com dois parceiros absorvedores: a instituição pública (Bio-Manguinhos) e uma empresa privada nacional, com destaque para a Bionovis. Por determinação do Ministério da Saúde, a Bionovis é o nosso único parceiro nacional para as PDPs, atuando como absorvedor de tecnologia, e que, assim como nós, viabiliza o desenvolvimento de competências e o estabelecimento de capacidade fabril nacionais.

A política visa ao desenvolvimento do parque fabril e tecnológico nacional, seja ele público ou privado, mas garantindo que o parceiro público domine a tecnologia e tenha competência para produzir e sustentar o fornecimento dos produtos para os programas de Saúde Pública, pelo tempo que for necessário. Bio-Manguinhos tem um importante papel na implementação da política de PDPs que viabiliza o fornecimento de vacinas e biofármacos de alto valor agregado, ampliando o acesso da população brasileira a tratamento de doenças raras e de alto custo.

Todo esse histórico de competências e capacidade instaladas permitiu a Bio-Manguinhos responder, rapidamente, com ações efetivas para o combate à pandemia da COVID-19, incluindo a plena internalização da tecnologia de produção da vacina COVID-19, em menos de um ano e meio, a partir de dois contratos: um de Encomenda Tecnológica para processamento final da vacina e outro de Transferência de Tecnologia para incorporação da produção do IFA.

O Projeto da vacina COVID-19 foi, sem dúvida, um enorme desafio: incorporar a tecnologia de um processo que ainda estava em desenvolvimento, em tempo curtíssimo, e viabilizar a fabricação de um produto novo, em meio ao cenário de inúmeras restrições dadas pelo contexto de emergência sanitária. Enfim, é com muito orgulho de toda essa trajetória institucional e dos colaboradores de Bio-Manguinhos que podemos dizer que honramos o nosso papel contribuindo para a saúde pública e o fortalecimento do SUS.