O desenvolvimento autóctone da vacina meningocócica C conjugada de Bio-Manguinhos
A criação de Bio-Manguinhos ocorreu em 1976, motivada por duas epidemias de doença meningocócica causadas pelos grupos A e C, no início da década de 1970, no Brasil. Essa iniciativa também teve como objetivos o incentivo e a modernização da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na área de imunobiológicos. Na ocasião, ocorreu a transferência de tecnologia da produção da vacina polissacarídica antimeningocócica dos grupos A/C do Instituto Mérieux, na França, para Bio-Manguinhos, que se tornou, no Brasil, a instituição produtora dessa vacina. Seguindo a tendência tecnológica mundial de substituição do uso de vacinas polissacarídicas por conjugadas, com melhoria da resposta imunológica e ampliação da faixa etária, a instituição estabeleceu uma iniciativa para obtenção de vacinas conjugadas.
Dessa forma, em 1992, ingressei na unidade, para trabalhar como bolsista RHAE/CNPq, no Laboratório de Tecnologia Bacteriana (Lateb, antigo Laba), da Vice-diretoria de Desenvolvimento Tecnológico (VDTEC). Após ser entrevistada por Antonio Barbosa, Rui Porto e Ellen Jessouroun, responsáveis pelo laboratório, fui selecionada para participar do projeto idealizado por Ellen, que já possuía grande experiência na área de desenvolvimento tecnológico de vacinas bacterianas. O projeto consistia no desenvolvimento de metodologias de conjugação, inicialmente aplicadas ao polissacarídeo meningocócico do grupo C. Em 2000, tornei-me gerente do projeto de desenvolvimento da vacina meningocócica C conjugada, o que me proporcionou interação com diversas áreas do Instituto e, consequentemente, um grande aprendizado.
Nesse período, com o objetivo de acelerar o processo de desenvolvimento da vacina, intensificamos uma colaboração com o consultor americano especialista em polissacarídeos, Dr. Carl Frasche, e o Dr. Che-Hung Lee, ambos do Federal Drug Administration (FDA). Durante três semanas, trabalhamos juntos em Maryland, EUA, estudando os parâmetros de reação, como a ativação da proteína tetânica para o aumento do rendimento do processo e estabelecimento da metodologia de conjugação em escala de bancada, com resultados bastante promissores.
Quando retornei ao Brasil, continuamos o processo de desenvolvimento, empregando as metodologias estabelecidas. Naquele período, o andamento dos ensaios de conjugação e purificação das moléculas era acompanhado pelo Dr. Akira Homma, então diretor de Bio-Manguinhos, que contribuiu de forma significativa para o estabelecimento do processo produtivo, aumentando ainda mais a minha admiração pela sua competência e experiência na área de vacinas. A equipe de conjugação, composta por Renata Bastos (atualmente, responsável pelo Laboratório de Macromoléculas/Lamam), Milton da Silva e Iaralice de Souza (atualmente, gerente do projeto Anticorpo Monoclonal Biossimilar Nivolumabe/Programa de Biofármacos), trabalhou intensamente no estabelecimento de métodos de purificação e caracterização físico-química e imunológica da vacina conjugada, o que resultou no estabelecimento da prova de princípio e conclusão dos testes pré-clínicos.
Posteriormente, a equipe do Lateb, coordenada por Maria de Lourdes Leal e Elza Figueira, estabeleceu a ampliação da escala de produção e um novo processo de purificação do polissacarídeo vacinal, com remoção de agentes tóxicos utilizados no processo antigo e aumento de seis vezes no rendimento da molécula. Em 2012, transferimos os processos de produção da vacina para o Departamento de Vacinas Bacterianas (Debac) e aumentamos a escala de produção do polissacarídeo para biorreator de 1000L, da produção dos componentes intermediários, conjugado (IFA) e produto final, com obtenção de lotes industriais, capazes de atender à demanda da vacina. Com base nesses estudos, em 2015, obtivemos a concessão de uma patente americana do processo de produção e purificação das vacinas meningocócicas conjugadas grupos A e C, incluindo dois pesquisadores americanos e três inventores de Bio-Manguinhos (Ellen Jessouroun, Renata Bastos e Ivna Alana da Silveira).
Os estudos clínicos de Fase I da vacina meningocócia C conjugada se iniciaram em adultos, em 2006. O início da Fase II foi em 2010, com a realização de testes clínicos em crianças de 01 a 09 anos, que demonstraram ausência de eventos adversos importantes. Em relação à imunogenicidade, a vacina conjugada de Bio-Manguinhos apresentou soroconversão global satisfatória, porém inferior à da vacina similar comercial usada como referência (produzida pela Baxter). Esses resultados indicaram a necessidade de melhorias no processo de produção, como a otimização da taxa de conjugação. Por sugestão da Anvisa, foi realizado um novo estudo de Fase I em adultos, em 2014, em comparação com a mesma vacina de referência, que dessa vez demonstrou ausência de eventos adversos importantes e imunogenicidade similar para ambas as vacinas, com excelente soroconversão.
Finalmente, a última avaliação clínica da vacina, o estudo de Fase II/III, teve início em 2018, em comparação com a vacina do Programa Nacional de Imunizações (PNI), produzida pela GSK. Voluntários de três faixas etárias (11 a 19 anos, 01 a 10 anos e crianças menores de 12 meses) foram recrutados e vacinados em centros de estudos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e em Belém do Pará. Para avaliação das amostras obtidas, a equipe do Lateb, responsável por ensaios imunológicos, composta por Solange Fernandes, Denise Pereira, Ana Cristina de Melo e Barbara Silva, realizou a validação do ensaio bactericida, utilizado como padrão ouro para a avaliação da resposta imunológica induzida por vacinas meningocócicas. Em maio de 2021, foi concluído o estudo de campo e, apesar das dificuldades relativas à pandemia de COVID-19, todos os voluntários foram incluídos e as amostras foram coletadas, evidenciando o trabalho de excelência da Assessoria Clínica (Asclin), coordenada pela Dra. Maria de Lourdes Maia. Os resultados, em abril de 2022, ainda estão em análise, mas têm se mostrado altamente promissores. O próximo passo será a produção dos lotes de consistência da vacina e diluente, com validação concorrente, para posterior submissão do registro do produto à Anvisa.
Todo esse processo contou com a participação de diversas equipes de Bio-Manguinhos, já que é complexo e multidisciplinar. Mas gostaria de fazer uma menção especial à contribuição do Dr. Reinaldo Menezes, que participou de vários estudos clínicos e sempre foi um incentivador do projeto.
Bio-Manguinhos é a primeira instituição brasileira com iniciativa nessa área, já que o processo de produção da vacina meningocócica C conjugada foi pioneiro no desenvolvimento autóctone de uma vacina nacional. Esse projeto proporcionou o investimento na capacitação profissional de um grupo multidisciplinar apto a trabalhar desde a escala de bancada até a escala industrial, além de vasta produção científica. É importante ressaltar a competência adquirida pelo Lateb e Laboratório de Tecnologia Imunológica (Latim) em analisar um quantitativo elevado de amostras clínicas para avaliação da resposta imunológica. Com isso, atualmente, a instituição possui uma Plataforma Tecnológica de Conjugação Química, que pode ser empregada para a obtenção de outras vacinas conjugadas contra bactérias encapsuladas de interesse epidemiológico no Brasil, além da obtenção de biomoléculas conjugadas na área de biofármacos e reativos para diagnóstico.
Essa conquista foi fruto do trabalho em equipe, formada por profissionais competentes, com muita determinação e persistência, e confirma a contribuição de Bio-Manguinhos para a autossuficiência em imunobiológicos e a saúde pública do nosso país! Por isso, tenho muito orgulho de ser Bio-Manguinhos, de ser FIOCRUZ e ter tido a oportunidade de aprender e contribuir com a geração de conhecimentos e o desenvolvimento de produtos destinados à proteção da população brasileira, atendendo, assim, às demandas do Sistema Único de Saúde (SUS).